sábado, 30 de maio de 2015

Caim: o Abel que não deu certo. Ou deu?

Um Índio

Estou deixando a cidade de Porto Velho. Na última rotatória antes de entrar na BR 364 me deparo com uma escultura em chapa de ferro dobrado representando um indígena. O que me impressiona na obra, além de seu aspecto modernista, é o efeito tridimensional que o artista plástico Júlio Carvalho conseguiu causar: no centro da rotatória, o “índio” de sete metros de altura parece fazer com que a direção de sua flecha acompanhe o movimento do veículo.


Contudo, a obra que fora inaugurada em vermelho vivo em 2006, hoje encontra-se coberta de ferrugem, talvez para combinar com o restante dos monumentos históricos de Porto Velho.
Pesquisando, descubro que existem pelo menos 11 diferentes povos indígenas, distribuídos em 20 terras indígenas, totalizando cerca de 11 mil pessoas. Não vi nenhum. Não fosse o “índio de ferro” na rotatória da BR 364 não haveria visto nenhum sinal de “presença indígena” em Rondônia.
As condições da BR 364 dali em diante variam bastante. Em geral são melhores do que no Acre. Em muitos trechos a pista é irregular e o tráfego de caminhões também se intensifica, exigindo dose maior de cautela nas ultrapassagens.



Nos municípios que se cruza ao longo da BR há uma boa oferta de serviços, inclusive mecânicos. Vou precisar, porque o cabo do acelerador partiu. Por sorte, no movimento de volta, dificultando a desaceleração da moto, mas não a sua aceleração. Uma rápida “gambiarra” me ajuda a seguir viagem sem problemas.
Percebo que em alguns trechos desmatados ao longo da rodovia alguém teve o cuidado de replantar árvores nativas, tornando a viagem especialmente agradável nestes trechos.
Um destaque também é a serra de Jaru: uma bem-vinda alteração na paisagem com pedras e curvas deleitosas aos olhos e ao movimento da moto.
Meu destino é a cidade de Vilhena, no extremo sul do estado. Para tanto são necessários percorrer pouco mais de 700 kms. Meu corpo já começa a dar sinais de desgaste quando anoitece. Eucaliptais intermináveis lançam sua sombra na rodovia. Sua regularidade geometricamente calculada me soa a um só tempo fantasiosa e ameaçadora: me faz recordar da célebre “marcha dos martelos” de Pink Floyd em “The Wall”.
Finalmente chego a Vilhena. Já nas suas ruas, percebo uma cidade que parece estar vivendo o “sonho sertanejo” em sua plenitude. Apropriadamente, a juventude celebra nas esquinas, com cerveja e música alta, o seu “zeitgeist”: o espírito de um tempo marcado pelo capitalismo movido pelo agronegócio.
A avenida central de Vilhena impressiona pelo seu ar de “modernidade”. Lojas caras e “chiques”, bares e restaurantes. Vida Noturna, enfim.
Em uma pizzaria (muito boa a massa, por sinal), vou me encontrar com o meu interlocutor.
Magno é funcionário de um órgão do judiciário estadual. Suas primeiras palavras são um desabafo de quem assiste às mais variadas formas de corrupção, mas se vê impotente diante dela. O favoritismo parece dar o tom das relações interinstitucionais.

- Um alto escalão teve a cara de pau de fazer passar na ALERO uma lei que permite que um funcionário se afaste do cargo para estudar, mantendo a sua remuneração. A mulher do sujeito está lá agora, no Paraná, recebendo sem trabalhar. Agora pergunte se eu consigo um benefício destes? Todas as vezes que eu solicitei, claro, foi negado.

Esta relação entre Paraná e Rondônia é tão evidente que me faz lembrar daquela história dos portugueses plantando cana no Brasil e mandando os filhos estudar na Europa. Não é coincidência: é a mesma estrutura colonial se reproduzindo ao longo dos séculos.

- Sabe, eu acho que Rondônia foi colonizada pelo paranaense que não deu certo.
- Não deu certo? Como assim?
 - As pessoas que não conseguiram espaço no Paraná, por vários motivos, acabam vindo para cá. Muita gente veio por que aprontou tanto no Paraná que se vê obrigado a ir embora.
- Bem, talvez eu seja um paulista que não deu certo também
- Talvez, mas eu não falo nesse sentido. Falo de gente que busca oportunidade de enriquecer e se dar bem a qualquer custo, passando por cima de tudo e de todos. São esses que dão as cartas em Rondônia. E sabe o que é mais curioso: isso é uma história que se repete. Afinal, o que é o Paraná? É o gaúcho que não deu certo. O Paraná foi colonizado por gente que não conseguiu se estabelecer no Rio Grande do Sul, e assim, a roda gira e continua a girar.

No dia seguinte de manhã pego minha moto e vou atravessando a avenida principal. Sigo adiante admirando as lojas da moderna Vilhena: roupas, calçados, lanchonetes e opa, pera aí... uma cafeteria. Nada como uma dose de cafeína para cair na estrada.
Em Vilhena, tudo me parece contente e feliz em seu lugar: uma cidade bem-resolvida com sua vocação. Não há nada que me faça lembrar que ali, ainda estou na Amazônia. Mas quando estou na última esquina e vou virar à esquerda para voltar à BR, um grafite, me faz uma provocação diferente:

-Você pode viver com menos, diz    



Tanque cheio, pneus calibrados e cafeína no sangue, estou pronto para mais um trecho.
Na estrada, o vento já é meu companheiro de novo. Vou pensando nas palavras de Magno, sobre Rondônia ser o paranaense que não deu certo. É quando o meu capacete me diz:
- Ora, não é afinal a história de toda a humanidade: sempre partindo, de um lugar a outro, pelas mais variadas razões. O que é Caim, se não o Abel que não deu certo?
- Talvez tenha dado mais certo que Abel. Afinal, ele sobreviveu. Abel morreu, e Caim viveu para conhecer os caminhos aonde a estrada iria lhe levar.


*Leandro Altheman é jornalista e escritor, autor do livro "Muká, a Raiz dos Sonhos”, que pode ser encontrado em Rio Branco, nas livrarias Nobel e Paim ou pelo telefone (68) 9281-3087 (Gesileu) em Cruzeiro do Sul com Edna Rosas (68) 9959-1658 ou com o próprio autor através do email leandroke@yahoo.com.br

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